Passo pela
rua sentada no banco de um ônibus. Dezoito horas e alguns minutos.
Igrejas, bancos, lojas, empresas, clubes, parques, coisas e pessoas passam como
num passe de mágica pelos olhos cansados que insistem em fechar sob o balanço
do transporte. Pessoas às pressas ou descuidadamente tranquilas num mundo cão,
onde é proibido relaxar os sentidos, sob a punição de um ataque repentino dos
vermes que invadem o mesmo espaço.
Centros bancários que nos
trazem a falsa sensação de segurança na pessoa de seus vigilantes, ariscos e
desconfiados de tudo e de todos. Clientes que não sabem se devem olhar a
operação da máquina ou se assumem a posição de próprio guarda- costas, porque aquele
só tem a função de guardar as próprias, desde que sua integridade garanta a
integridade da empresa para quem expõe a vida.
Na pessoa do vigia não
parece haver homem, não parece haver vida. Não se vê o pai, o marido, o amigo,
o filho ou o irmão. Somente a face gélida, treinada pelo oficio, cumprindo com honra a honra de
poder morrer a troco de alguns “Reais”.
No interior do mercado, instalado ao lado do
farol, que vermelho, força a parada do transporte coletivo, vejo pessoas a passos ensaiados dirigindo-se ao caixa com alguns pacotes nas mãos contendo, provavelmente, breve suprimento para aguentarem a noite de trabalho ou
adiantarem o processo do desjejum a que se submeteram no afã do longo dia.
Talvez mães, com a cabeça tão repleta pelo
mecanismo cerebral que as leva a pensar na cria, que ficou horas sem ver ou
ficará a partir de então. Não há mulher, não há pessoa, apenas um ser, que se
conhece apenas por “ser mãe". Por causa de este dever de ser, sai de casa, vai
ao mercado, compra um lanche, ruma ao trabalho ou regressa dele, pois essa é a
saída para a possibilidade de garantir a sobrevivência da prole.
Na fila para pagar a compra, outros corpos,
inertes, acompanhando o andar do primeiro até chegar a sua vez. Mentes
ausentes, olhos distantes: alguém precisa atravessar a fila que se empilha de
gente, e para ser entendido, precisa de três tentativas de pedido de licença.
Corpos não ouvem, não pensa, o máximo que fazem é reagir a instintos. Assim,
sem mudar o olhar, o cavalheiro, afasta-se e o outro, sem dar-se ao trabalho de olhá-lo no rosto , agradece e se vai.
Por isso, um
tropicão em alguém no ônibus ou na rua, é causa máxima para grave discussões,
porque não há mentes, os ônibus levam corpos e nas ruas circulam matéria
desprovidas de percepções sobre o próximo. O próximo vem guardado apenas na
memória distante, que pensa no filho, nos pais, no cônjuge, pessoas intimamente
ligadas a si. Os demais são os outros, sim, você e eu somos os outros,
invisíveis e sem valor pessoal. Não há espaço para cortesia, mas a ira se vê
estampada na face dos passageiros toda vez que uma pessoa “especial” entra e o
assento preferencial, ocupado por pessoas sem necessidades especiais, tem de
ser cedido. Não há razão, não há ponderação, porque corpos, por si só, não
podem refletir, e cadê a razão dos transeuntes? Estão ocupadas em lugares
remotos resolvendo problemas ou refletindo sobre coisas mais pessoais.
Ruas movimentadas de
estudantes que a colorem com suas roupas, mochilas e bolsas, onde deve haver
todo o repertorio para sua intelectualidade por vir. Não há moças, rapazes,
senhoras ou senhores. Há pés programados para o crescimento intelectual, que
acham os portões da escola pela prática diária, enquanto suas mentes vêm atrás
de si, após um longo tour por suas preocupações e/ou aspirações. Não há prazer
em suas faces, mas a dura realidade do dever a ser cumprido que força-os a fazer o que sabem que deve ser
feito. Não vejo almas, porque alma sente. Percebo apenas corpos flutuantes em
busca de um lugar para a matéria num mundo material, onde a alma é treinada a
subjugar-se a rotina, que lhes repete que o dever deve antepor-se ao prazer e o
prazer é antagônico ao dever.
Clubes, bibliotecas,
centros culturais e recreativos, lindos, suntuosos e... Vazios!
Comparados às ruas e locais de trabalhos cheios de trabalhadores e
aspirantes a serviçais. Nos poucos centros de prazer, poucas pessoas, que podem
se dar ao luxo de em um dia comum de trabalho curtir o
relaxamento. Mas estas, nem são vistas, como se sua excelência é tão
descabida de ser contemplada pelos que, nos transportes públicos, não têm
direito a tão selecionado público.
Horas no transito. Sono.
Sono profundo, que não consegue ser dormido, apenas sentido. Os olhos teimam em
ver o que o coração clama para não ver. A mente já não quer mais ponderar sobre
nada, porque os fins de todas as reflexões acabarão em nada. Nada mais nada é
melhor adiantar o processo e pensar em nada. É tudo o que a mente consegue
processar no momento.
Vultos de prédios,
paisagens, pessoas. Só vultos. Estou meio acordada, meio dormindo. A vontade é
de dormir de verdade, mas apesar do sono, o repouso não vem. Os olhos fecham,
mas a cabeça não para. Não pensa, mas gira em torno de tudo o que foi visto.
Sono, muito sono! Fecho os
olhos para me entregar ao apagão que me trará a sensação de que cheguei mais
rápido ao fim do meu trajeto. Acomodo-me, meio incômoda no assento do ônibus,
repouso a cabeça pesada sobre o encosto, e finjo que durmo, como todo mundo lá
fora e dentro do ônibus, que apesar de terem os olhos escancarados, não se dão conta
do que se passa ao seu redor.
Finjo. Tento convencer meu
cérebro de que durmo. A mentira foi repetida tantas vezes, que ao chegar ao meu
ponto, percebo que dormi de verdade. Não sei quanto tempo, mas dormi, ainda que
apenas um cochilo.
Descobri que a mente é
assim: Por mais que seja poderosa para nos trazer informações diárias e nos
capacitar a refletir sobre elas, ainda somos nós quem a comandamos.
Por isso, em meus trajetos
diários no transporte coletivo, vejo pessoas tão iguais, mecânicas, distantes,
programadas. Pessoas que são frutos de suas mentes subjugadas pela indiferença,
sem sequer se dar conta que submetem a escravidão da mesmice, um agente capaz
de transformar suas existências em algo espetacular, que se chama “Vida”.
Leila Castanha
04/2013
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