sábado, 1 de junho de 2013

VIAGEM DE ÔNIBUS



Passo pela rua sentada no banco de um ônibus. Dezoito horas e alguns minutos. Igrejas, bancos, lojas, empresas, clubes, parques, coisas e pessoas passam como num passe de mágica pelos olhos cansados que insistem em fechar sob o balanço do transporte. Pessoas às pressas ou descuidadamente tranquilas num mundo cão, onde é proibido relaxar os sentidos, sob a punição de um ataque repentino dos vermes que invadem o mesmo espaço.
Centros bancários que nos trazem a falsa sensação de segurança na pessoa de seus vigilantes, ariscos e desconfiados de tudo e de todos. Clientes que não sabem se devem olhar a operação da máquina ou se assumem a posição de próprio guarda- costas, porque aquele só tem a função de guardar as próprias, desde que sua integridade garanta a integridade da empresa para quem expõe a vida.
Na pessoa do vigia não parece haver homem, não parece haver vida. Não se vê o pai, o marido, o amigo, o filho ou o irmão. Somente a face gélida, treinada pelo oficio,  cumprindo com honra a honra de poder morrer a troco de alguns “Reais”.
No interior do mercado, instalado ao lado do farol, que vermelho, força a parada do transporte coletivo, vejo  pessoas a passos ensaiados dirigindo-se ao caixa com alguns pacotes nas mãos contendo, provavelmente, breve suprimento para aguentarem a noite de trabalho ou adiantarem o processo do desjejum a que se submeteram no afã do longo dia.
 Talvez mães, com a cabeça tão repleta pelo mecanismo cerebral que as leva a pensar na cria, que ficou horas sem ver ou ficará a partir de então. Não há mulher, não há pessoa, apenas um ser, que se conhece apenas por “ser mãe". Por causa de este dever de ser, sai de casa, vai ao mercado, compra um lanche, ruma ao trabalho ou regressa dele, pois essa é a saída para a possibilidade de garantir a sobrevivência da prole.
 Na fila para pagar a compra, outros corpos, inertes, acompanhando o andar do primeiro até chegar a sua vez. Mentes ausentes, olhos distantes: alguém precisa atravessar a fila que se empilha de gente, e para ser entendido, precisa de três tentativas de pedido de licença. Corpos não ouvem, não pensa, o máximo que fazem é reagir a instintos. Assim, sem mudar o olhar, o cavalheiro, afasta-se e o outro, sem dar-se ao trabalho de  olhá-lo no rosto ,  agradece e se vai.
 Por isso, um tropicão em alguém no ônibus ou na rua, é causa máxima para grave discussões, porque não há mentes, os ônibus levam corpos e nas ruas circulam matéria desprovidas de percepções sobre o próximo. O próximo vem guardado apenas na memória distante, que pensa no filho, nos pais, no cônjuge, pessoas intimamente ligadas a si. Os demais são os outros, sim, você e eu somos os outros, invisíveis e sem valor pessoal. Não há espaço para cortesia, mas a ira se vê estampada na face dos passageiros toda vez que uma pessoa “especial” entra e o assento preferencial, ocupado por pessoas sem necessidades especiais, tem de ser cedido. Não há razão, não há ponderação, porque corpos, por si só, não podem refletir, e cadê a razão dos transeuntes? Estão ocupadas em lugares remotos resolvendo problemas ou refletindo sobre coisas mais pessoais.
Ruas movimentadas de estudantes que a colorem com suas roupas, mochilas e bolsas, onde deve haver todo o repertorio para sua intelectualidade por vir. Não há moças, rapazes, senhoras ou senhores. Há pés programados para o crescimento intelectual, que acham os portões da escola pela prática diária, enquanto suas mentes vêm atrás de si, após um longo tour por suas preocupações e/ou aspirações. Não há prazer em suas faces, mas a dura realidade do dever a ser cumprido que  força-os a fazer o que sabem que deve ser feito. Não vejo almas, porque alma sente. Percebo apenas corpos flutuantes em busca de um lugar para a matéria num mundo material, onde a alma é treinada a subjugar-se a rotina, que lhes repete que o dever deve antepor-se ao prazer e o prazer é antagônico ao dever.
Clubes, bibliotecas, centros culturais e recreativos, lindos, suntuosos e... Vazios! Comparados  às ruas e locais de trabalhos cheios de trabalhadores e aspirantes a serviçais. Nos poucos centros de prazer, poucas pessoas, que podem se dar ao luxo de em um dia comum de trabalho curtir o relaxamento. Mas estas, nem são vistas, como se sua excelência é tão descabida de ser contemplada pelos que, nos transportes públicos, não têm direito a tão selecionado público.
Horas no transito. Sono. Sono profundo, que não consegue ser dormido, apenas sentido. Os olhos teimam em ver o que o coração clama para não ver. A mente já não quer mais ponderar sobre nada, porque os fins de todas as reflexões acabarão em nada. Nada mais nada é melhor adiantar o processo e pensar em nada. É tudo o que a mente consegue processar no momento.
Vultos de prédios, paisagens, pessoas. Só vultos. Estou meio acordada, meio dormindo. A vontade é de dormir de verdade, mas apesar do sono, o repouso não vem. Os olhos fecham, mas a cabeça não para. Não pensa, mas gira em torno de tudo o que foi visto.
Sono, muito sono! Fecho os olhos para me entregar ao apagão que me trará a sensação de que cheguei mais rápido ao fim do meu trajeto. Acomodo-me, meio incômoda no assento do ônibus, repouso a cabeça pesada sobre o encosto, e finjo que durmo, como todo mundo lá fora e dentro do ônibus, que apesar de terem os olhos escancarados, não se dão conta do que se passa ao seu redor.
Finjo. Tento convencer meu cérebro de que durmo. A mentira foi repetida tantas vezes, que ao chegar ao meu ponto, percebo que dormi de verdade. Não sei quanto tempo, mas dormi, ainda que apenas um cochilo.
Descobri que a mente é assim: Por mais que seja poderosa para nos trazer informações diárias e nos capacitar a refletir sobre elas, ainda somos nós quem a comandamos.
Por isso, em meus trajetos diários no transporte coletivo, vejo pessoas tão iguais, mecânicas, distantes, programadas. Pessoas que são frutos de suas mentes subjugadas pela indiferença, sem sequer se dar conta que submetem a escravidão da mesmice, um agente capaz de transformar suas existências em algo espetacular, que se chama “Vida”.

Leila Castanha
04/2013


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