Com a assinatura da lei áurea, os negros deixaram suas condições de escravos para serem donos do próprio nariz. Ficaram livres das sinhás e das humilhações e domínio de seus senhores. Agora, eles podiam ir e vir quando e quantas vezes quisessem. Podiam trabalhar a dinheiro e não mais a troco da própria vida; negociar seu trabalho e manter seus corpos e almas livres das mãos sujas dos carrascos.
Daí pra frente a coisa seria diferente: poderiam falar de igual pra igual com qualquer pessoa, independentemente da raça ou cor. Não eram mais escravos, e por isso, não poderiam mais ser tratados como animais, nem como seres invisíveis. Finalmente seriam vistos como gente, com direitos e deveres; se bem que dos deveres ninguém os deixava esquecer, desde suas épocas de escravidão, a questão aqui era, na verdade, seus direitos. Nossa! E no plural! Isso seria algo do tipo utópico para um escravo, cujo direito era em suma, cumprir bem seus deveres de serviçal perante seus donos.
O problema é que, apesar de tanto tempo desde que a princesa Isabel decretou o fim da escravidão, essa questão parece não ter ficado bem resolvida: a liberdade concedida aos escravos negros dava-lhes o direito a quê, exatamente?
-A serem livres dos chicotes dos carrascos, não mais se expondo a humilhações e torturas físicas?;
-Serem seus próprios senhores e decidirem o próprio destino?
-Serem reconhecidos e respeitados como cidadãos?
-A trabalharem de maneira digna para adquirir suas subsistências, no emprego que julgarem mais adequados?
Enfim, se todas as respostas forem positivas, muita coisa tem que ser revista em nosso país. Qual é a dimensão dessa liberdade?
Quando o trabalho escravo ainda era usado, a história narra fatos de alguns fujões que, ao tentar se aventurar como pessoas livres morreram de fome ou doença, e outros, para escapar do trágico fim, voltaram humilhados e impotentes às senzalas, onde a vida parecia-lhes menos dura do que no meio do povo branco, que, preconceituosamente, fechavam-lhes as portas!
Por isso a pergunta: qual era o objetivo da libertação dos negros? O que percebo sem esforço algum, é que os escravos foram libertados de seus senhorios, mas, continuam cativos do preconceito geral.
Ao dizer que penso que esta questão da libertação dos negros não foi bem entendida, é porque entendo que muitos veem a lei áurea como um decreto a soltura dos negros escravos, ao invés de entendê-la como sua libertação.
Para me fazer mais clara, recorro ao Aurélio para entender como ele define a palavra liberdade. Segundo ele, é: faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação; poder de agir, no seio de uma sociedade organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites impostos por normas definidas; faculdade de praticar tudo quanto não é proibido por lei; etc. E, a palavra livre, entre outros adjetivos é: que goza dos seus direitos civis e políticos.
Baseando-nos na explicação dada acima, será que realmente entendemos o ato da princesa Isabel? Fico indignada ao reparar que muitos veem a população negra como marginais, acredito que o termo mais adequado é marginalizados, visto que essa posição de excluídos não partiu deles mas, de seus opressores preconceituosos.
Os negros foram libertados, mas, nunca foram realmente livres, antes, novos carrascos levantam-se diariamente para afligi-los com piadas racistas e todo tipo de exclusão social (basta observar que os tiraram das senzalas e os jogaram nas favelas). Além do mais, continuam sofrendo situações preconceituosas, como por exemplo, não é raro se ver casos policiais envolvendo pessoas inocentes só pelo fato de serem negras.
A falta de liberdade, no contexto do Aurélio, descrito acima, é tão óbvia, contra a raça negra, que, quando alguém parece querer fazer valer seus direitos, fazem-no, talvez, inconscientemente, de maneira humilhante e, de certa forma, preconceituosa, criando medidas legais que, ao invés de engrandecê-los, rebaixa-os a pessoas incapazes, como é, a meu ver, o caso das cotas, que reserva um determinado número de vagas para os excluídos, dentre os quais, o “cidadão de cor”.
Na verdade, acredito haver boa intenção em tudo isso, mas, não concordo que seja correto se consertar um erro grotesco dos nossos antepassados, dando acesso aos direitos de um povo, sem um suporte firme, para que esses direitos alcançados possa possibilitá-los a avançar em novas conquistas.
Penso que, melhor do que dar “ingresso”, seria dar condições fundamentais para todos independentes de classe, cor ou posição social, para que possam de igual modo, cada qual segundo o seu esforço, conquistar o seu lugar ao sol.
Na questão educacional, por exemplo, é incoerente dizer que o fato de se inscrever alguém na mesma universidade dos demais é dá-lhe os mesmos direitos, pois é óbvio que quem não teve a mesma educação no ensino médio não há de ter o mesmo rendimento no ensino superior. Pegar atalho, não é a proposta política mais sensata a se oferecer a um povo que tem por história, uma vida a sombra dos restos dos outros.
Os nossos irmãos negros alcançaram a alforria e agora tem o direito de percorrer o caminho que escolherem por inteiro, do começo ao fim, sem atalhos: na educação, no esporte, na religião, no amor e no trabalho. Isso é liberdade! Poder escolher e decidir sua vida, na mesma proporção que os demais cidadãos de sua pátria. Escolher e decidir acho que é a melhor exemplificação do que é ser livre, pois onde não há escolha, não há liberdade. Ser encaixado, portanto, não é a mesma coisa.
Se não se pode ter liberdade, pra que a soltura? Quando escravos, os negros sabiam que não tinham escolha alguma, mas, o homem livre ele é cobrado pela sociedade. E assim, enquanto lhe questionam sua falta de sucesso na vida, o pobre negro se vê perdido entre sua carta de alforria e as correntes invisíveis que o racismo e o preconceito os obrigam a carregar. Que liberdade é essa que abrem as portas da senzala e fecham as portas do mundo?
A verdade é que a raça negra, após anos da lei áurea, continua ainda hoje submissamente impotente, tanto quanto seus antepassados. Os negros sempre foram vistos como pessoas excluídas e desprezadas. Daí quando tratamos dos dois maiores problemas, pelo menos a meu ver, o preconceito racial e social, o negro se encaixa em ambos. Claro que não nasceram com carimbo na testa declarando-os inferiores e incapacitados, apenas foram vítimas da presunção de alguns que se acham superiores, como se o valor de uma pessoa fosse medido por sua pele ou bem que se possui.
O dia da consciência negra deveria ser chamado de dia da consciência branca, para que cada cidadão racista possa pôr a mão na consciência e perceber que a cor de uma pessoa não determina o seu valor.
Costumo dizer que a princesa Isabel não deu a liberdade aos escravos, mas, restituiu-lhes o que já lhes era de direito.
A lei áurea foi assinada, portanto, todos os cidadãos negros possuem os mesmos direitos dos demais. Resta aos nossos governantes conscientizar o povo que, a partir de então, cabe ao povo negro o dever de servir ao seu país, com dignidade, e o direito de ser servido por ele, com igualdade.
Leila Castanha
2010
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