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Bem disse ¹Adélia Prado: O
trem de ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia (...).
No nosso viver diário
conhecemos muitas coisas que se movem, porém não vive. O relógio, que marca
cada segundo e rege nosso tempo é uma delas. Apesar de reger nossa
existência ele mesmo não é. Sua função resume-se em se mover no ritmo calculado
de seus ponteiros. Move-se, mas não vive.
O automóvel que avança em
velocidade frenética, indo e vindo ao aperto do acelerador, movido pelo motor
que o impulsiona, vai e vem na direção apontada pelo volante que por sua vez
move as rodas. O carro move-se, porém não vive.
O instrumento musical de
afinados acordes enche a alma ao mais relapso ouvinte. Sua melodia pode mudar
os sentimentos atuais de um ser, transformando-o em ofegante gozo ou em
melancólica tristeza. A música, tocada nas cordas ou no sopro de um instrumento
musical, faz acontecer o que o silêncio nem sempre alcança. Como magia ela
move-se em acelerado som na alma carente. Move-se, mas não é um ser vivo.
O cata-vento no alto de um
moinho capta o vento e gira conforme a intensidade de seu assopro. Roda lenta
ou violentamente cortando o ar ao entorno de si. O cata-vento move-se, mas não
vive.
O relógio marca a
hora, a máquina fotográfica tira fotos, a Televisão reproduz imagens e sons
nela gravados, o telefone interliga as vozes que viajam no espaço até o ouvido
que dele se apropria, o automóvel movimenta-se, segundo a potência de seus
motores, a geladeira gela, o chuveiro espirra água, o barco flutua sobre o rio,
o avião trafega pelos ares etc. Todos se movem e executam uma ação em maior ou
menor escala. Agem com perfeição, deixando o homem em êxtase admirando suas
operações mecanicamente programadas. Movem-se com destreza, porém não vivem.
Algumas pessoas passam
pela vida da mesma forma. A exemplo de um relógio sua existência é resumida em
organizar a vida dos outros enquanto o tempo vai gastando-lhe as pilhas ou
travando-lhe as cordas, e, por fim, sem repararem no próprio tempo, que tão bem
administram em prol da vida alheia, envelhecem e morrem agindo muito e vivendo
pouco.
Gastam-se, alheios ao
correr do tempo, enquanto mecanicamente trabalham, ensinam, aconselham, são
presentes e oportunos na vida dos filhos, do cônjuge, dos colegas, dos amigos
particulares, da comunidade, sem se darem conta que em relação a si mesmos
inexistem e se rebaixam à mera coisa.
Coisas podem mover-se
segundo suas programações, mas apenas seres humanos podem viver. Quando nos
despojamos de nossa capacidade de escolha, nos fazemos comparáveis à coisas,
que, apesar de práticas e necessárias, existem apenas para cumprir uma ação
programada e satisfazer os desejos egoístas. Rebaixamo-nos a existir como
"Algo" no mundo, quando negamos nossa ambição lógica que seria a de
vivermos sendo “Alguém” no mundo.
Não somos coisas para
levarmos em nós a assinatura alheia. Somos seres, cuja vida, com seus ofícios e
designers, deve ser escolhida segundo nosso gosto particular. Somos seres, cuja
história deve ser escrita de próprio punho, e cujo exterior de nossa capa deve
conter a imagem que nós mesmos escolhemos, a fim de dar aos leitores da vida
alheia aquilo que pretendemos que de nós se leia.
Não somos coisas. Coisas
são feitas para serem usadas a fim de satisfazer a necessidade de outros e
servir ao prazer alheio.
O valor dos objetos
é medido pela necessidade que se tem deles, mas para mim, o valor de alguém é
medido pelo o que as pessoas são. Somos alguém, e não algo.
Ser alguém é não deixar-se
mover pelo ritmo mecânico das massas, nem pelo mecanicismo da mídia, ou ainda,
pelo círculo vicioso do ensino bancário. É ver a vida, segundo a ótica de Paulo
Freire, na qual os homens são seres programados, apenas para aprender. Dentre
tantas coisas, aprender a ser gente e não coisas.
Ser gente é não mover-se
sem direção, e nem agir direcionado por outros, despido dos próprios ideais. É
absorver as coisas externas e processá-las no interior, buscando o impulso da
ação na capacidade reflexiva do cérebro.
Ser Alguém é fazer coisas,
renovar as coisas e ignorar as que não nos acrescentam.
É, acima de tudo, viver,
negando-se a existir no movimento mecânico, onde não há perspectivas, nem
ideais.
Viver é refletir nossas
ações para não nos movermos com os pés da massa ou com a cabeça da mídia.
Porque, na qualidade de seres vivos e vivendo num mundo de coisas fúteis e
materialista, viver é não se dar ao descaso de ser mais uma coisa com cara de
gente.
Leila Castanha
01/2015
¹Adélia Prado: O
verso citado faz parte do poema “Explicação de poesia sem ninguém pedir”.
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